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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

" SOMOS NÓS DUAS PERDIDAS NO MEIO DO NADA "




Por Nadjara Martins



Passa despercebida no meio das crianças que brincam de biloca no meio da rua, pois os títulos não lhe pesam no sorriso despretensioso. Gilvanilta Ferreira, 22, cearense de nascença e potiguar por um capricho do destino, é uma das grandes promessas do surf brasileiro. Ainda na categoria amador, já carrega os títulos de tri-campeã estadual, campeã por antecipação na categoria Open Feminino do Circuito Billabong Brasileiro, vice-campeã por equipe no campeonato mundial ISA Games, no Panamá – todos conquistados em 2011-, o que lhe rendeu a posição de 12º melhor surfista no cenário mundial.
Gilvanilta – ou Jú, como é conhecida-, é mais um dos talentos nascidos na Vila de Ponta Negra. Depois de nomes como Danilo Costa, Jadson André e Joca Júnior, Jú também é fruto de alguns projetos sociais que trazem para os jovens da Vila a alternativa do esporte, num terreno que é fértil para a proliferação de oportunidades de ganho imediato, como as drogas e a prostituição.
Um desses projetos é a Associação Mutirão, organização que nasceu oficialmente em maio deste ano, voltada para a promoção dos direitos humanos entre os grupos sociais vulneráveis. Seu idealizador e organizador, advogado Luciano Falcão, 32, militante da causa indígena e quilombola, está também à frente da Falcão Assessoria Jurídica – ambas as organizações voltadas para o auxílio às comunidades carentes no Rio Grande do Norte. Embora mantenha sede na Vila, a Mutirão só começou a atuar no bairro recentemente, e um de seus expoentes é a luta de Jú.

“Quebrava as ondas”




“Um belo dia, conversando com Washington Luiz (diretor técnico da Federação de Surf do RN), eu vi essa figura e a trajetória dela. Ela era dura: quebrava as ondas surfando em prancha de isopor”, conta Luciano. Não que a situação esteja tão melhor do que nos tempos de surf de isopor: apesar das grandes competições, do destaque internacional que vem conquistando, ela ainda enfrenta uma dificuldade comum à maioria dos atletas potiguares que é a falta de incentivo.
Para a disputa do ISA Games, Jú precisava de ajuda para a passagem, inscrição e alimentação, o que contabilizava mais de mil reais. Com alguma dificuldade, conseguiu apoio das empresas Eco Propaganda e Vilac Alimentos. Porém, com o título ganho e a recente exposição na mídia, alguns se aproveitam do bom momento de Jú. Em entrevista a um jornal da capital, em agosto, a Secretaria Estadual de Esporte e Lazer (SEEL) disse garantir a passagem da atleta. Isso nunca aconteceu. Segundo Luciano, as passagens foram utilizadas pelo diretor técnico da Federação de Surf no RN, Washington Luís, para bancar a participação do filho na competição.
Além da falta de apoio, o governo é ainda responsável pela falta de pagamento de prêmios em alguns torneios no RN. Em abril de 2010, a prefeitura realizou o campeonato “Surf Cidade da Gente”, do qual Jú saiu vencedora. Um vale prancha e um vale passagem seriam os prêmios, mas nenhum foi entregue. Apesar das idas e vindas a SEEL, ninguém deu resposta. Jú enviou um requerimento e espera ansiosamente uma decisão – quem sabe, se eles responderem, ainda dê tempo de vender os prêmios e bancar a próxima etapa do Circuito Nordestino Amador, no dia 14.

Outra realidade

“Deixa de sonho, Jú”, diz dona Neide. Ela não é uma mãe desnaturada, pelo contrário, sempre incentivou o sonho dos filhos. Mas a realidade não é fácil – só quem já lutou bastante na vida é que sabe. E é por isso que dona Neide sustenta sua tese: sem patrocínio, Jú não vai a lugar nenhum. “Eu vejo sair na mídia, ganhar tanto campeonato, mas não tem reconhecimento. Não tem patrocínio para garantir. Por que todo mundo vê que ela é a melhor do Brasil, mas é um esforço grande. Não é a realidade dela”, explica.
A realidade da qual fala Maria Rosa da Conceição – conhecida com dona Neide, nem ela sabe o porquê-, é a de quem mora no final da Rua da Floresta, há quase 30 anos, na Vila de Ponta Negra. De quem vendeu coco na praia por 15 anos, e com essa renda criou sozinha três filhos. É a realidade de uma casa que já foi de palha, depois de barro, e agora de um concreto meio desconjuntado e com falta de remendos. A casa simples, sem energia há dois meses por causa de uma acusação de gato que foi motivo suficiente para o corte.
Segundo Luciano Falcão, a suspeita da companhia veio do acordo entre dona Neide e os construtores de uma obra na Barreira do Inferno: ela concederia uma ligação de energia em troca do pagamento total das faturas. Quando a obra acabou e o consumo despencou, a Cosern foi investigar. Encontrou uma ligação e culpou sem nenhum esclarecimento.
Dona Neide se revolta: não bastassem as dificuldades para manter a casa – agora adoentada, depende somente dos prêmios de Jú-, teve que acostumar-se a viver em um local perigoso, sem luz. “Parece que nós não somos humanas. Nós não somos cidadãs. Somos nós duas, perdidas no meio do nada”, confessa.

Construir sonhos

Quando os outros dois filhos foram embora – construir seus sonhos fora do país-, a única que lhe restou foi Jú, e para ela todo o amor. Para passar o tempo no escuro, brincam do que poderão ter um dia. “Quando acordo e só tem café – café preto mesmo-, eu pergunto à mãe: ‘a senhora quer Coca-Cola? Ela diz que sim, com muito gelo. Então eu dou um copo de água quente e a gente toma como se estivesse bem geladinha”, comenta Jú.
A cada dificuldade elas vão passando, vão sobrevivendo. Às vezes se revoltam contra Deus, contra o mundo, mas é da dor que dá e passa. O olhar de ambas não nega: não são de guardar rancor, nem mesmo contra Deus. Mesmo quando a inevitável pergunta é feita: “Por que todo mundo consegue e a gente não?”.
Ainda assim, Jú sabe que não vai desistir. “A cada dificuldade você se torna mais forte... de vez em quando você pensa em largar tudo, mas sabe que não vai conseguir. Vida de surfista é muito complicada, o que a gente faz tem que amar muito”. E a gente sabe que ela é apaixonada.



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