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terça-feira, 31 de maio de 2011

AS COISAS E O QUE FAZEMOS COM ELAS

Por João Paulo da Silva





Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte. Maio de 2011. Eu tinha ido cobrir um protesto de 200 trabalhadores rurais sem terra naquele município. Com suas camisas e bandeiras vermelhas, eles deslizavam pela principal avenida do centro da cidade como um rio de sangue, som e fúria. Era o sangue dos companheiros mortos em Eldorado dos Carajás, o som das reivindicações urgentes e a fúria da necessidade de viver. A caminhada ia em direção à sede da Prefeitura, onde o MST exigiria do chefe do executivo municipal a construção de uma escola nas proximidades de seus assentamentos na região.
A exigência dos sem terra era apenas para ter o direito à educação, mas a polícia foi chamada e os supermercados fecharam as portas. Aglomerados em frente à Prefeitura, homens, mulheres e crianças cantavam e pediam para ser recebidos. Entre eles e o prefeito, um cordão de policiais armados. Entre os pobres e a educação, as armas. Entre o povo e o futuro, o descaso. Historicamente, sempre foi assim. A violência sempre chegou primeiro do que os direitos.
Mas o impasse estava posto. Os trabalhadores não sairiam dali enquanto não fossem recebidos pela Prefeitura. E a polícia não sairia da frente enquanto não recebesse a ordem. Provavelmente para evitar desgaste político, o prefeito resolveu atender uma comissão de sem terras. Por alguma razão que até hoje desconheço, eu acabei indo junto com o grupo de negociação. Naquela euforia toda, ainda pude ouvir um trabalhador dizer: “Ele é jornalista. Ele é jornalista. Bota ele na comissão também.”. Talvez fosse pela possibilidade de registrar tudo. Não sei.
Acompanhei toda a conversa entre o prefeito e os trabalhadores. Horas depois, ficou a promessa de atender a reivindicação do MST. Educação nos assentamentos. Simples assim. Mas a lição dessa história é outra. Não é sobre como podemos conseguir nossos direitos exercendo pressão sobre os governantes. Muito embora esta seja uma boa lição. A aula mesmo é sobre as coisas e o que fazemos com elas.
Dentro do prédio da Prefeitura, na ante-sala do gabinete do prefeito, eu aguardava a comissão ser recebida. Do lado de fora, com a rua fechada, o restante dos trabalhadores cantava hinos de luta. Como quem não quer nada, um policial se aproximou de mim e perguntou:
- Você está com eles?
- Só acompanhando a negociação. Sou jornalista.
- Hum... Queria ver uma coisa com você.
- Pois não.
- Veja, lá fora tem muita gente armada com facões e foices. E nós não queremos que nenhuma confusão aconteça. Não poderíamos ver a possibilidade desse pessoal aí entregar essas armas? Nós recolhemos e depois devolvemos. Só por segurança. – argumentou ele.
- Acho muito difícil, policial. Mesmo porque não há ameaça de nada lá fora.
- E aquelas armas?
- Que armas?
- Aqueles facões e foices.
- Não são armas, policial. São instrumentos de trabalho. Foram feitos para o serviço no campo. Não têm como finalidade ferir ninguém.
- Sim, eu sei. Também tenho meus instrumentos de trabalho. – disse ele, batendo de leve em sua pistola presa ao coldre.
- É diferente. Não é a mesma coisa. O seu instrumento de trabalho foi feito com o objetivo específico de matar. – respondi eu, mas o policial já estava se afastando com um riso no canto da boca.

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