Por João Paulo da Silva
É engraçado como um sentimento nostálgico vai tomando conta da gente com o passar do tempo. À medida que nos afastamos do passado, começamos a sentir saudades de uma porção de coisas. Os amigos, o primeiro carrinho, a primeira namorada, os pais que se foram... Tudo. Tudo um dia faz falta.
As melhores definições sempre foram dadas pelos poetas. Mario Quintana definiu bem aquele aperto no peito que sentimos diante do passado: “A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha”. A tecnologia nos permitiu registrar o tempo em pixels, mas não conseguiu evitar que ele nos escapasse por entre os dedos. Afinal, não podemos voltar.
Nossas lembranças seguem nos acompanhando até o fim da vida. Como um mau hábito, uma cicatriz no peito, um cisco no entendimento. Vez ou outra o mundo nos permite o retorno a um passado longínquo. Uma fisgada no membro que já perdemos, como diria Chico Buarque. Mesmo que seja só por um breve momento.
Os cheiros. Você naturalmente já deve ter tido a experiência. Um cheiro que te consentiu uma pausa na loucura do dia-a-dia, um intervalo na esquizofrenia da vida. Cheiro de recreio de escola. O azulejo do pátio limpo e frio. Biscoitos, refrigerantes, doces e salgados. Gritaria. Corre-corre. É cheiro de recreio de escola!
Eu fazia 4ª série num colégio de freiras. Minha mãe preparava a lancheira cuidadosamente, sempre tendo como referência a situação econômica do país. Em tempos de vacas gordas, bolo, biscoito recheado e refrigerante. Às vezes um danoninho. Em tempos de recessão, bolacha de água e sal e suco de acerola. No chão limpinho do pátio, eu forrava minha toalhinha, abria a garrafinha térmica e o depósito com biscoitos. Comia educadamente ao som de “meu lanchinho, meu lanchinho! Vou comer, vou comer! Pra ficar fortinho e crescer!” Eu gostava. Mas não há apenas boas lembranças dessa época. Havia também três garotos mais velhos da 8ª série. Eles eram maiores, usavam calças compridas, já tinham bigode e costumavam roubar o lanche dos menores. Fui muitas vezes vítima desses saqueadores.
- Aê, pivete! Passa pra cá esses biscoitos! Rápido! – dizia o Robertinho, líder da gangue.
- Não. Eles são meus. – respondia eu, timidamente.
- Dá logo, moleque! E engole o choro! Se contar pra professora, a gente te bate.
Roubavam meus biscoitos e saíam correndo. Nunca pude fazer nada. Hoje, doze anos depois, eu ainda encontro o Robertinho na rua. Ele não me reconhece, mas eu jamais o esqueci. O fato é que estou pelo menos dez centímetros mais alto que ele, tenho barba e bigode vastos e ando com uma vontade imensa dizer “E aí, Robertinho? Lembra quando você roubava meu lanche?!” Acho que ele me reconhece sim, só não quer admitir.
Eu não sei vocês. Mas eu adoro cheiro de caderno novo. Me lembra a época, pouco antes do fim das férias, em que saíamos para comprar material escolar. Era tudo novo. Ano novo, roupa nova, vida nova... Ah! Caderno novo! Era um ritual. Eu ficava cheirando as folhas do caderno, sentindo o frescor do papel novo.
- Para de cheirar isso, menino! – gritava minha mãe. – Vai acabar doente!
Coitada dela. Só os que conhecem o cheiro sabem o que isso significa. Tem toda uma simbologia. Geralmente comprávamos o caderno novo no começo do ano, antes do início das aulas. As eufóricas esperanças no ano novo continuavam presentes, e as promessas ainda não haviam sido quebradas. “Esse ano prometo que largo a bebida”. “Vou fazer um regime!”. “Dessa vez é sério. Vou deixar de fumar”. As promessas de princípio de ano duram só alguns meses. Basta apenas as atribulações cotidianas ocuparem novamente nossos dias para as promessas desaparecerem. O caderno novo é uma representação, uma alegoria sobre a vida. O cuidado excessivo com as coisas dura enquanto durar o cheiro de novo. Ou enquanto durarem as euforias.
Bom, é claro que existem cheiros que me trazem angustiantes reminiscências. Álcool, por exemplo. O cheiro forte de álcool me lembra prova mimeografada. Se você tem menos de quinze anos, provavelmente não conheceu um mimeógrafo. Era uma rústica máquina à base de álcool e papel carbono. Na minha época de escola, praticamente todas as provas eram mimeografadas. A tensão e a ansiedade que eu sentia na hora de fazer as provas ficaram na minha cabeça associadas ao cheiro do álcool. Hoje, basta sentir o cheiro que me vem logo um friozinho na barriga.
Assim como os cheiros, as músicas também exercem certos efeitos sobre nós. Existem pessoas que são capazes de relatar etapas da própria vida usando apenas músicas.
- Tá ouvindo, Juvenal?
- O quê?
- A nossa música. Tá tocando.
- E daí?
- Como assim “E daí?”, Juvenal?! É a nossa música! Tava tocando quando a gente se conheceu naquele baile. Você lembra? Noite mais linda. Besame, besame mucho. Como si fuera esta noche la ultima vez...
- Para com essa zoada, Maria! Música mais horrorosa! Tá. Tá bom. Desculpa, vai. Não precisa chorar. Olha, não fica zangada. Ei, aonde você vai?! Maria, larga já essa faca! Calma aí, amorzinho. Socorro!
Carinhoso, do Pixinguinha, me faz lembrar de uma garota por quem fui apaixonado durante alguns anos na escola. Me lembro do ano, do dia e da hora em que a vi pela primeira vez. Era 1996, segunda-feira, 07h15min da manhã. Por alguma razão maluca que desconheço, a música acabou marcando essa época. Sempre que ouço, lembro dela. Qual era o nome da garota? Isso eu não lembro. Perdemos completamente o contato, o que por um lado foi positivo. Evitou o vexame.
- Oi! Quanto tempo! Tá lembrado de mim? – ela perguntaria.
- Claro! Como poderia esquecer?!
- Então qual é o meu nome?
Para que eu esquecesse, devia ser um nome muito feio. Desses de dar cãibra na língua. Agora, cá entre nós, efeito devastador mesmo quem me causa é o francês. Não consigo ouvir nada em francês sem pensar em safadeza. Tenho certeza de que não terei problemas com impotência sexual. Ao menor sinal de falha no sistema, bastará ouvir francês. Ne me quitte pas, por exemplo. Funciona melhor que viagra. Eu mesmo não posso escutá-la em público. Por motivos óbvios, claro. Na minha idade, certos comportamentos são reprováveis. E certas lembranças, impublicáveis.
As melhores definições sempre foram dadas pelos poetas. Mario Quintana definiu bem aquele aperto no peito que sentimos diante do passado: “A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha”. A tecnologia nos permitiu registrar o tempo em pixels, mas não conseguiu evitar que ele nos escapasse por entre os dedos. Afinal, não podemos voltar.
Nossas lembranças seguem nos acompanhando até o fim da vida. Como um mau hábito, uma cicatriz no peito, um cisco no entendimento. Vez ou outra o mundo nos permite o retorno a um passado longínquo. Uma fisgada no membro que já perdemos, como diria Chico Buarque. Mesmo que seja só por um breve momento.
Os cheiros. Você naturalmente já deve ter tido a experiência. Um cheiro que te consentiu uma pausa na loucura do dia-a-dia, um intervalo na esquizofrenia da vida. Cheiro de recreio de escola. O azulejo do pátio limpo e frio. Biscoitos, refrigerantes, doces e salgados. Gritaria. Corre-corre. É cheiro de recreio de escola!
Eu fazia 4ª série num colégio de freiras. Minha mãe preparava a lancheira cuidadosamente, sempre tendo como referência a situação econômica do país. Em tempos de vacas gordas, bolo, biscoito recheado e refrigerante. Às vezes um danoninho. Em tempos de recessão, bolacha de água e sal e suco de acerola. No chão limpinho do pátio, eu forrava minha toalhinha, abria a garrafinha térmica e o depósito com biscoitos. Comia educadamente ao som de “meu lanchinho, meu lanchinho! Vou comer, vou comer! Pra ficar fortinho e crescer!” Eu gostava. Mas não há apenas boas lembranças dessa época. Havia também três garotos mais velhos da 8ª série. Eles eram maiores, usavam calças compridas, já tinham bigode e costumavam roubar o lanche dos menores. Fui muitas vezes vítima desses saqueadores.
- Aê, pivete! Passa pra cá esses biscoitos! Rápido! – dizia o Robertinho, líder da gangue.
- Não. Eles são meus. – respondia eu, timidamente.
- Dá logo, moleque! E engole o choro! Se contar pra professora, a gente te bate.
Roubavam meus biscoitos e saíam correndo. Nunca pude fazer nada. Hoje, doze anos depois, eu ainda encontro o Robertinho na rua. Ele não me reconhece, mas eu jamais o esqueci. O fato é que estou pelo menos dez centímetros mais alto que ele, tenho barba e bigode vastos e ando com uma vontade imensa dizer “E aí, Robertinho? Lembra quando você roubava meu lanche?!” Acho que ele me reconhece sim, só não quer admitir.
Eu não sei vocês. Mas eu adoro cheiro de caderno novo. Me lembra a época, pouco antes do fim das férias, em que saíamos para comprar material escolar. Era tudo novo. Ano novo, roupa nova, vida nova... Ah! Caderno novo! Era um ritual. Eu ficava cheirando as folhas do caderno, sentindo o frescor do papel novo.
- Para de cheirar isso, menino! – gritava minha mãe. – Vai acabar doente!
Coitada dela. Só os que conhecem o cheiro sabem o que isso significa. Tem toda uma simbologia. Geralmente comprávamos o caderno novo no começo do ano, antes do início das aulas. As eufóricas esperanças no ano novo continuavam presentes, e as promessas ainda não haviam sido quebradas. “Esse ano prometo que largo a bebida”. “Vou fazer um regime!”. “Dessa vez é sério. Vou deixar de fumar”. As promessas de princípio de ano duram só alguns meses. Basta apenas as atribulações cotidianas ocuparem novamente nossos dias para as promessas desaparecerem. O caderno novo é uma representação, uma alegoria sobre a vida. O cuidado excessivo com as coisas dura enquanto durar o cheiro de novo. Ou enquanto durarem as euforias.
Bom, é claro que existem cheiros que me trazem angustiantes reminiscências. Álcool, por exemplo. O cheiro forte de álcool me lembra prova mimeografada. Se você tem menos de quinze anos, provavelmente não conheceu um mimeógrafo. Era uma rústica máquina à base de álcool e papel carbono. Na minha época de escola, praticamente todas as provas eram mimeografadas. A tensão e a ansiedade que eu sentia na hora de fazer as provas ficaram na minha cabeça associadas ao cheiro do álcool. Hoje, basta sentir o cheiro que me vem logo um friozinho na barriga.
Assim como os cheiros, as músicas também exercem certos efeitos sobre nós. Existem pessoas que são capazes de relatar etapas da própria vida usando apenas músicas.
- Tá ouvindo, Juvenal?
- O quê?
- A nossa música. Tá tocando.
- E daí?
- Como assim “E daí?”, Juvenal?! É a nossa música! Tava tocando quando a gente se conheceu naquele baile. Você lembra? Noite mais linda. Besame, besame mucho. Como si fuera esta noche la ultima vez...
- Para com essa zoada, Maria! Música mais horrorosa! Tá. Tá bom. Desculpa, vai. Não precisa chorar. Olha, não fica zangada. Ei, aonde você vai?! Maria, larga já essa faca! Calma aí, amorzinho. Socorro!
Carinhoso, do Pixinguinha, me faz lembrar de uma garota por quem fui apaixonado durante alguns anos na escola. Me lembro do ano, do dia e da hora em que a vi pela primeira vez. Era 1996, segunda-feira, 07h15min da manhã. Por alguma razão maluca que desconheço, a música acabou marcando essa época. Sempre que ouço, lembro dela. Qual era o nome da garota? Isso eu não lembro. Perdemos completamente o contato, o que por um lado foi positivo. Evitou o vexame.
- Oi! Quanto tempo! Tá lembrado de mim? – ela perguntaria.
- Claro! Como poderia esquecer?!
- Então qual é o meu nome?
Para que eu esquecesse, devia ser um nome muito feio. Desses de dar cãibra na língua. Agora, cá entre nós, efeito devastador mesmo quem me causa é o francês. Não consigo ouvir nada em francês sem pensar em safadeza. Tenho certeza de que não terei problemas com impotência sexual. Ao menor sinal de falha no sistema, bastará ouvir francês. Ne me quitte pas, por exemplo. Funciona melhor que viagra. Eu mesmo não posso escutá-la em público. Por motivos óbvios, claro. Na minha idade, certos comportamentos são reprováveis. E certas lembranças, impublicáveis.
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