Por João Paulo da Silva
A hostilidade do mundo quase sempre nos obriga a viver numa sufocante solidão. Vivemos como a última gota de uma cachaça barata na garrafa de um Deus mendigo, onde constantemente nos encontramos perdidos e sós, mesmo cercados por algumas centenas de pessoas.
É com tristeza que percebo o quanto o homem se afasta de si mesmo, se distanciando da essência da condição humana, numa crise de identidade que o levará para o vácuo das gargantas dos próprios demônios. Dia desses, contra minha vontade, pude comprovar o que digo hoje.
Infelizmente, para se entrar em um cinema é necessário entrar primeiro no shopping, ambiente extremamente artificial que dificulta bastante o discernimento entre o que é humano e o que é mercadoria. Já era final de tarde quando saí do cinema. Eu tinha ido ver um drama, nada muito cruel que mereça uma comparação com a realidade que nos envolve. Desci pela escada rolante me sentindo meio vazio, desatento e infeliz. De súbito, como se tivesse surgido de dentro do bolso de alguém, um garotinho apareceu em minha frente. Tinha os pés sujos, descalços e usava uma roupinha rasgada. Olhou-me com uma vivacidade que não era a mesma de sua voz minguada, e disse meio suplicante:
- Tio, me paga um sorvete?
Senti como se tivessem me roubado todo o ar dos pulmões, parecia haver uma mão invisível a me apertar a garganta. Talvez fosse a mesma mão invisível que controla o mercado, aquela da qual Adam Smith falou. Devia estar sufocando o menino também, pois ele suplicou novamente:
- Tio, me paga um sorvete?
Respondi sem ter a exata certeza do que dizia.
- Pago, claro que pago.
Dirigi-me com o garoto a um quiosque bem a nossa frente. Era um McDonald’s. Tive um momento de indecisão político-ideológica que logo fora esmagado pelo alvoroço feliz que se instalou no rosto do moleque. Ainda assim era um conflito. Shakespeare diria que eu me encontrava entre a presa e o dragão. Se comprasse o sorvete, estaria contribuindo para o fortalecimento das paredes de nossa angustiante prisão. Se não o comprasse, possivelmente frustraria a miragem de felicidade do menino e ainda o deixaria com fome. Acabei pagando.
As mãos do garoto mal tocavam a parte superior do balcão. O balconista dirigiu-se a mim:
- Pois não?
- Um sorvete pra ele.
- Só um minuto.
Duas senhoras ao lado deviam estar olhando com maus olhos o meu ato, assim como o balconista que também não conseguira disfarçar sua indiferença através de um sorriso malicioso no canto da boca. Aproveitei esse intervalo de tempo para conversar com o menino.
- Onde está sua mãe?
- Em casa.
- E seu pai?
- Também.
- E o que é que você está fazendo na rua?
- Arrumando dinheiro.
- Foram seus pais que pediram?
O garotinho vacilou por um instante, provavelmente pensando no que responder. Acabou balançando a cabeça numa afirmativa.
Eu estava gelado, sentia um misto de desespero e revolta, algo me comprimia o peito. Uma mão. Uma mão invisível. Por estar distraído, não vi quando o segurança do shopping começou a puxar o moleque para fora. Acordado pelo esperneio do menino, intervi:
- Êpa! Pode deixar! Ele tá comigo.
O segurança virou as costas e saiu sem me olhar nos olhos. Muitos se sentiriam poderosos se tivessem feito o que fiz. Eu me senti impotente. Tudo que pude fazer para amenizar a situação foi afagar a cabeça do garoto, que me retribuiu o gesto com um sorriso tímido. Não sei ao certo o que senti, mas posso garantir que não se tratava de piedade.
Paguei o sorvete e o entreguei ao menino, que ainda suplicante me disse:
- Tio, me leva lá fora.
Eu o levei. Antes que ele corresse para se encontrar com seus amigos que o esperavam numa esquina, eu lhe adverti:
- Não tome isso tudo sozinho pra não ficar doente, divida com seus amigos.
- Tá, tio. Tchau!
Fiquei ali parado por uns instantes, não sabia exatamente o que fazer ou sentir. Estava com a cabeça cheia de pensamentos embaralhados, desnorteados, não tinha a exata certeza do que acabara de fazer. Eu deveria me sentir feliz? Deveria me sentir um homem? Um ser humano? Acho que não. Tudo aquilo tinha se mostrado muito pequeno. As relações sociais capitalistas haviam acabado de pagar R$ 2,00 pelo sorriso momentâneo daquela criança. Comecei a ficar um tanto triste, mas não desiludido.
Em meu peito afloraram todos os tipos de sensações possíveis, menos aquela do dever cumprido. Amanhã aquele garoto amanheceria com fome de novo e a angustiante prisão ainda estaria nos sufocando com sua mão invisível, até o dia em que decidirmos amanhecer definitivamente humanos.
É com tristeza que percebo o quanto o homem se afasta de si mesmo, se distanciando da essência da condição humana, numa crise de identidade que o levará para o vácuo das gargantas dos próprios demônios. Dia desses, contra minha vontade, pude comprovar o que digo hoje.
Infelizmente, para se entrar em um cinema é necessário entrar primeiro no shopping, ambiente extremamente artificial que dificulta bastante o discernimento entre o que é humano e o que é mercadoria. Já era final de tarde quando saí do cinema. Eu tinha ido ver um drama, nada muito cruel que mereça uma comparação com a realidade que nos envolve. Desci pela escada rolante me sentindo meio vazio, desatento e infeliz. De súbito, como se tivesse surgido de dentro do bolso de alguém, um garotinho apareceu em minha frente. Tinha os pés sujos, descalços e usava uma roupinha rasgada. Olhou-me com uma vivacidade que não era a mesma de sua voz minguada, e disse meio suplicante:
- Tio, me paga um sorvete?
Senti como se tivessem me roubado todo o ar dos pulmões, parecia haver uma mão invisível a me apertar a garganta. Talvez fosse a mesma mão invisível que controla o mercado, aquela da qual Adam Smith falou. Devia estar sufocando o menino também, pois ele suplicou novamente:
- Tio, me paga um sorvete?
Respondi sem ter a exata certeza do que dizia.
- Pago, claro que pago.
Dirigi-me com o garoto a um quiosque bem a nossa frente. Era um McDonald’s. Tive um momento de indecisão político-ideológica que logo fora esmagado pelo alvoroço feliz que se instalou no rosto do moleque. Ainda assim era um conflito. Shakespeare diria que eu me encontrava entre a presa e o dragão. Se comprasse o sorvete, estaria contribuindo para o fortalecimento das paredes de nossa angustiante prisão. Se não o comprasse, possivelmente frustraria a miragem de felicidade do menino e ainda o deixaria com fome. Acabei pagando.
As mãos do garoto mal tocavam a parte superior do balcão. O balconista dirigiu-se a mim:
- Pois não?
- Um sorvete pra ele.
- Só um minuto.
Duas senhoras ao lado deviam estar olhando com maus olhos o meu ato, assim como o balconista que também não conseguira disfarçar sua indiferença através de um sorriso malicioso no canto da boca. Aproveitei esse intervalo de tempo para conversar com o menino.
- Onde está sua mãe?
- Em casa.
- E seu pai?
- Também.
- E o que é que você está fazendo na rua?
- Arrumando dinheiro.
- Foram seus pais que pediram?
O garotinho vacilou por um instante, provavelmente pensando no que responder. Acabou balançando a cabeça numa afirmativa.
Eu estava gelado, sentia um misto de desespero e revolta, algo me comprimia o peito. Uma mão. Uma mão invisível. Por estar distraído, não vi quando o segurança do shopping começou a puxar o moleque para fora. Acordado pelo esperneio do menino, intervi:
- Êpa! Pode deixar! Ele tá comigo.
O segurança virou as costas e saiu sem me olhar nos olhos. Muitos se sentiriam poderosos se tivessem feito o que fiz. Eu me senti impotente. Tudo que pude fazer para amenizar a situação foi afagar a cabeça do garoto, que me retribuiu o gesto com um sorriso tímido. Não sei ao certo o que senti, mas posso garantir que não se tratava de piedade.
Paguei o sorvete e o entreguei ao menino, que ainda suplicante me disse:
- Tio, me leva lá fora.
Eu o levei. Antes que ele corresse para se encontrar com seus amigos que o esperavam numa esquina, eu lhe adverti:
- Não tome isso tudo sozinho pra não ficar doente, divida com seus amigos.
- Tá, tio. Tchau!
Fiquei ali parado por uns instantes, não sabia exatamente o que fazer ou sentir. Estava com a cabeça cheia de pensamentos embaralhados, desnorteados, não tinha a exata certeza do que acabara de fazer. Eu deveria me sentir feliz? Deveria me sentir um homem? Um ser humano? Acho que não. Tudo aquilo tinha se mostrado muito pequeno. As relações sociais capitalistas haviam acabado de pagar R$ 2,00 pelo sorriso momentâneo daquela criança. Comecei a ficar um tanto triste, mas não desiludido.
Em meu peito afloraram todos os tipos de sensações possíveis, menos aquela do dever cumprido. Amanhã aquele garoto amanheceria com fome de novo e a angustiante prisão ainda estaria nos sufocando com sua mão invisível, até o dia em que decidirmos amanhecer definitivamente humanos.
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